Psicanálise, psicopatologia e saúde mental
- Anna Luiza
- 12 de mar.
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Atualizado: 13 de mar.
Nos dias atuais, vivemos em uma sociedade onde o discurso social sobre as psicopatologias e sobre a saúde mental é permeado por uma abundância de diagnósticos e está fortemente ligado à expansão da indústria farmacêutica (Travaglia, 2014). Nas determinações da quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) (APA, 2014), pode ser compreendido que qualquer mal-estar, incômodo ou sofrimento psíquico pode ganhar o nome de transtorno, déficit ou distúrbio (Travaglia, 2014). Dessa forma,
Tudo se torna passível de intervenção psiquiátrica e medicamentosa na atualidade, cada comportamento ou afeto pode ser medicalizado, além de que a compreensão de tratamento se colocar num viés de correção e adequação dos comportamentos (Travaglia, 2014, p. 33)
O conceito de saúde mental não é definido de maneira direta no DSM-V (APA, 2014), mas sim inferido a partir da descrição dos transtornos mentais e de suas características. Alguns princípios implícitos no DSM-5 indicam que o que os organizadores consideram ter saúde mental igual a ter funcionalidade adequada em várias áreas da vida, ter capacidade de adaptação ao estresse e as adversidades do cotidiano e não possuir sintomas clínicos significativos que causam sofrimento ou prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes (APA, 2014).
Em contrapartida, o conceito de doença mental ou de transtornos mentais é sim
caracterizado pelo Manual como uma perturbação no funcionamento psicológico emocional ou comportamental, um sofrimento expressivo ou incapacidade em áreas importantes da vida, como o trabalho ou relações sociais, e comportamentos ou experiências desviantes ou disfuncionais, que são diferentes dos padrões esperados pela sociedade ou cultura (APA,2014).
Nas primeiras edições do DSM, era possível encontrar uma relação próxima entre o
DSM e as teorias psicanalíticas tanto na maneira de pensar as psicopatologias, como também nas possibilidades de tratamento (Leite; Couto, 2024). Porém, já na publicação da penúltima edição, foi possível perceber que
As psicopatologias passaram a ser compreendidas por um viés biologizante, mesmo que, para dar dois exemplos, não se encontrem marcadores biológicos que comprovem, por exemplo, a causalidade orgânica da depressão ou dos transtornos bipolares; aposta-se nessa ideia e enfatiza-se midiaticamente que o programa do DSM é a-teórico. Esta perspectiva configura uma escolha política e se apresentava em acordo com a proposta da Associação Psiquiátrica Americana (APA) que, na década de 1990, começa a compreender os transtornos mentais por um viés marcadamente funcional e orgânico (Leite; Couto, 2024, p. 7)
Olhando para os movimentos feitos na construção do DSM-V, percebe-se que ocorreu um afastamento entre as proposições que se encontram nele e as teorias psicanalíticas. Muitos consideram que “é a produção dos medicamentos, a indústria e sua busca por lucros, que determina a fabricação de diagnósticos e também o efeito de adoecimento, o controle e leitura de comportamentos através da lente da psicopatologia” (Travaglia, 2014, p. 45), o que iria de encontro com a concepção de diagnóstico e psicopatologia utilizada pelos psicanalistas.
Alguns autores acreditam que as psicopatologias não são produto de uma explicação causa-efeito, mas sim de “uma relação de cada um com sua história, com o meio, com a vida e, inclusive, com acontecimentos intrauterinos” (Leite; Couto, 2024, pág. 15). Para Aline Alves da Silva Travaglia (2014)
Psicologizar e medicalizar a vida cotidiana é efeito de um alarmismo em torno de comportamentos até então tidos como comuns, que agora podem receber o signo de doentios, os incômodos e o mal-estar dos sujeitos se aglomeram em jargões médico, se cristalizam nos diagnósticos. E impede, em certa medida, a produção de soluções pelo próprio sujeito para o enigma de seu sofrimento, na realidade, a própria sustentação do sofrimento e do mal-estar como um enigma é sabotada quando se aplica um código que categoriza as expressões do psiquismo eliminado o sujeito (Travaglia, 2014, p. 47)
O conceito de diagnóstico para a psicanálise se difere bastante deste modelo biomédico tradicional utilizado no DSM-5. Para os psicanalistas, o diagnóstico não se limita a classificar o paciente com base em categorias fixas de transtorno. O diagnóstico
psicanalítico é dinâmico, relacional e subjetivo, foca na estrutura psíquica do sujeito e em como ele lida com seus conflitos inconscientes. Ao contrário de um diagnóstico objetivo e classificatório, como o do DSM, ele busca entender o funcionamento singular de cada indivíduo e a lógica de seus sintomas dentro de sua história pessoal.
Com efeito, não vendemos psicoterapia - se me permitirem a expressão -, mas aceitamos demandas terapêuticas e, portanto, tratamos de demandas terapêuticas. Nós as tratamos efetivamente, para além da escuta psicoterápica. Podemos precisar ainda mais, dizendo que a psicanálise apresenta dois aspectos indissociáveis. Trata-se de uma exploração do inconsciente, consiste em construir e, ao construir, por meio da fala, explora os significantes, as palavras, os desejos que circulam no inconsciente: essa é sua vertente epistêmica (Soler, 2018, p. 24)
Dessa forma, percebe-se que a relação entre a psicanálise e o campo da Saúde Mental enfrenta impasses significativos nos dias atuais, especialmente devido à rejeição psicanalítica das dualidades tradicionais, como saúde-doença e mente-corpo, e ao crescimento das teorias da chamada Psicologia Baseada em Evidências (PBE), que insistem em classificar a psicanálise como sendo uma pseudociência. Enquanto os estudos atuais do campo da Saúde Mental tendem a se basear em diagnósticos categóricos e modelos biomédicos, a psicanálise propõe alternativas que envolvem os conceitos de sujeito, inconsciente, sintoma/sinthome e gozo, enfatizando a singularidade de cada indivíduo e o papel dos processos inconscientes na constituição dos sintomas (Leite; Couto, 2024).
Dunker e Neto (2011) consideram que é na crítica da cultura ou no diálogo com as classificações diagnósticas que a psicanálise pode ter uma contribuição específica a dar para o campo de estudo das psicopatologias e da Saúde Mental, “na medida em que permite uma abordagem racional do subjetivo, do singular e dos aspectos irredutíveis a grandes leis gerais sobre o sofrimento humano” (Dunker; Neto, 2011, pág. 11). Para eles, a psiquiatria vem se aproximando, de forma perigosa, a uma prática mecânica de medicalização de massas, na qual, a sua ambição de alcançar a universalidade se torna uma “totalidade operacional”, da mesma forma que a sua capacidade para intervenções nas singularidades encontradas na clínica vira uma “generalidade particular” (Dunker; Neto, 2011). Isto pode ser percebido, na atualidade, pela quantidade de médicos, de leigos e das mídias que proferem diagnósticos a todo tempo. Cada comportamento de uma criança, por exemplo, pode se encaixar em diversas psicopatologias (Travaglia, 2014).
O maior dos exemplos referidos ao campo da infância é o diagnóstico de TDAH que com o auxílio da indústria farmacológica se alastrou pelas escolas gerando uma massificação desse diagnóstico. O ideal de saúde como a “quietude perfeita” e a compreensão de psicopatologia no nível dos comportamentos e transtornos, se conjuga com uma solução medicamentosa, o metilfenidato, vendido correntemente com o nome de Ritalina® ou Concerta®. A afirmação de um diagnóstico de TDAH se refere, na maioria dos casos, mais a uma questão institucional de desadaptação escolar, impulsividade e desobediência, que tenta ser imputado como consequência de um estado psíquico da criança (Travaglia, 2014, p. 45)
Apesar desses contrastes, a relação entre psicanálise, psicopatologia e o campo da Saúde Mental é fundamental para o entendimento do sofrimento humano no contexto atual e precisa ser mais explorada e debatida pelos psicanalistas, a fim de que se possa contribuir com o discurso social sobre os diagnósticos e com os tratamentos das psicopatologias. Assim, a psicanálise não irá cair no esquecimento dentro desse campo e não será considerada ultrapassada. efeitos terapêuticos provenientes de uma psicanálise, no entanto, o objetivo seria o analítico. Tanto Freud quanto Lacan deixaram claro, a partir de seus textos, que os efeitos terapêuticos são alcançados em análise, mesmo que o tratamento não seja orientado para tais efeitos e sim para o verdadeiro objetivo analítico (Leite; Couto, 2024). Num mundo que, frequentemente, busca soluções rápidas e superficiais, a psicanálise precisa reafirmar a importância do processo singular de autoconhecimento e da escuta atenta, e oferecer um caminho para a saúde mental com intervenções que considerem o sujeito em sua totalidade. Reconhece-se, assim, a pertinência e a contribuição da psicanálise na abordagem dos sofrimentos psíquicos, mesmo que precise lutar dentro de um campo que muitas vezes privilegia a objetividade e as classificações.

REFERÊNCIAS:
American Psychiatric Association - APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
DUNKER, C; NETO, F. A psicopatologia no limiar entre psicanálise e a psiquiatria: estudo comparativo sobre o DSM. Vínculo - Revista do NESME. 2011, v.8, n.2, 1-15. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/1394/139422412002.pdf . Acesso em: 12 out. 2024.
LEITE, M.; COUTO, R. Psicanálise, saúde mental e a indústria das evidências. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 27, p. 1-23, 2024. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlpf/a/GdF8hkzwBkvfthQDcwp8FdK/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 11 out. 2024.
SOLER, C. A querela dos diagnósticos. Tradução de Cícero Alberto de Andrade Oliveira e Elisa Touchon Fingermann. Revisão de Sandra Leticia Berta. São Paulo: Blucher, 2018.
TRAVAGLIA, A. Psicanálise e saúde mental, uma visão crítica sobre psicopatologia contemporânea e a questão dos diagnósticos. Psic. Rev., São Paulo, v. 23, n. 1, p. 33-49, 2014. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/psicorevista/article/view/20213/15042 . Acesso em: 12 out. 2024.
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