Lacan se apropria da linguística e subverte seus conceitos na sua teoria de estruturação do inconsciente. Na linguística, a função da linguagem é a comunicação, mas essa função se transforma em evocação dentro da psicanálise lacaniana (Ferreira, 2002).
Para Lacan,
Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo que se inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de força iniciais (Lacan, [1964] 1985, p. 25)
Dessa forma, não existe realidade que não seja discursiva, que não passe pela linguagem e que não seja anterior a nós. Segundo Lacan, é importante pensar que antes mesmo de qualquer formação do sujeito que pensa e se situa, tem algo que conta e é contado. Nisto, que é contado, já existe um contador. Ou seja, é só depois que o sujeito irá se reconhecer como contador, pois antes mesmo dele existir já havia, ali, a linguagem (Lacan, [1964] 1985).
No início da nossa vida, o corpo necessita construir uma noção de si e de sua imagem a partir do que está para além do seu próprio corpo. Este grande “Outro” abarca tudo o que é externo e tem grande papel no que se refere aos processos de subjetivação.
O famoso exemplo do neto de Freud ilustra bem o que seria esse ingresso no mundo das palavras, onde se cria o mundo das coisas. No jogo do carretel, as palavras balbuciadas (fort/da) já se organizam em torno do par presença e ausência. Diacronicamente, temos as leis da linguagem concretizadas numa determinada língua. Sincronicamente, temos o jogo do carretel, seguido de duas palavras, indicando a aquisição pelo sujeito do par opositivo de fonemas que recebe de sua língua materna. É a assimilação da estrutura sincrônica que indica a integração do sujeito na diacronia. Mas essa brincadeira com o carretel implica a destruição do objeto, uma vez que consiste em fazê-lo aparecer e desaparecer. Essa destruição do objeto indica o desaparecimento do sujeito (afânise), já que ele se toma como objeto, indicando assim o modo pelo qual se realiza a primeira manifestação do símbolo. Diz Lacan: “o símbolo se manifesta inicialmente como assassínio da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo” (LACAN, 1998, p. 320). É na alternância de presença e ausência que temos a constituição de traços que, para Lacan, são o rastro de um nada em torno do qual se engendra o sentido. É no uso de uma língua que se abre para o sujeito a possibilidade de múltiplas substituições e combinações, que irão determinar o seu destino e revelar, em uma análise, a sua posição na fantasia (Ferreira, 2002, p. 118)
Nesse sentido, entende-se que inconsciente é o discurso do Outro, que existe um discurso que envolve e que antecede a constituição de qualquer sujeito. Esse discurso, esse banho de linguagem, que o sujeito recebe, irá fazer parte de sua história. Dessa forma, a liberdade de todo sujeito tem um limite imposto pelas leis da linguagem e por um discurso que irá inscrevê-lo no desejo do Outro (Ferreira, 2002).
Lacan demarca, no seminário 3, que o inconsciente é a linguagem, que cada indivíduo carrega consigo seus sentidos e significados que moldam sua própria visão de mundo e consequente relação com as palavras. Quando pensamos no inconsciente estruturado como uma linguagem, podemos entender que o inconsciente fala, que é a casa do sujeito, e este fala. Por isso, o inconsciente - a linguagem - é o lugar de uma enunciação.
A linguagem é in(corpo)rada pela vivência afetiva, social e psíquica do sujeito (LACAN, [1956] 1981). Assim, os processos inconscientes são organizados em torno do registro simbólico da mesma. Isso significa que os desejos, medos, traumas e conflitos que residem no inconsciente encontram expressão através de símbolos, metáforas, sonhos, lapsos de linguagem e outras formas de linguagem.
O significante, elemento básico da linguagem, desempenha um papel central nessa formulação. Os processos inconscientes são mediados por significantes, que se relacionam uns com os outros em uma trama de linhas diacrônicas. O inconsciente, portanto, se situa no mesmo lugar dos significantes e por isso, também podemos defini-lo como uma cadeia de significantes que se repete e insiste em interferir no discurso. “O inconsciente é o que comparece na fala como dito que escapa à intenção do dizer e o que estrutura os processos de elaboração onírica, fazendo com que o sonho se apresente para seu autor como enigma a ser decifrado” (Ferreira, 2002, p. 120).
O significante ganha sentido através de sua relação com outros significantes, ou seja, o que produz sentido é a combinação dos mesmos. Um significante vai incidir sobre outro ao contrário da ordem cronológica, formando o significado. Dessa forma, a causa vem depois da consequência. O significado é o efeito do sincrônico (a posteriori) no diacrônico (cronológico). O sujeito é sempre o efeito da linguagem, ou seja, da articulação de um tempo a posteriori no tempo cronológico. Por isso, toda a produção de significado é parcial, porque todo o Sujeito é barrado. O falar nunca assume só uma dimensão, há sempre outros dizeres por trás daquilo que se diz. Para a psicanálise, há lacunas no discurso consciente, e nessas lacunas se inscreve um outro discurso que é inconsciente.
Assim, conclui-se que “a linguagem é não somente um sistema no qual o indivíduo humano deve entrar caso queira assumir seu lugar entre seus pares, em sua comunidade, mas, também, aquilo que estrutura o psiquismo, que funda o inconsciente e que nos permite existir como sujeitos.” (Macedo, 2020, p. 18)
E isso só acontece quando somos banhados pelas palavras dos que nos rodeiam, pelos ocupantes do lugar do Outro. O sujeito só existirá após ter passado por essas palavras (Macedo, 2020). Somos servos da linguagem por sermos seres falantes e estamos submetidos ao ela utilizando-a para tentar dizer o que somos.
REFERÊNCIAS:
FERREIRA, N. Jacques Lacan: Apropriação e subversão da Linguística. Revista Ágora. v. 5 n. 1 jan/jun 2002, p. 113-132
LACAN, J. (1956) O Seminário, Livro 3, As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.
LACAN, J. (1964) O Seminário, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2 ed., 1985.
MACEDO, S. A linguagem na estruturação do aparelho psíquico, Revista Analytica. v.9, n.17, São João del-Rei, 2020.
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